Calendários, Deuses E O Nexo Temporal

Deus Jano - Arte: Henrique Vieira Filho

Deus Jano
Deus Jano – Arte: Henrique Vieira Filho

A humanidade desenvolveu CALENDÁRIOS como uma tentativa de compreender, prever e até conquistar o TEMPO e, assim, acalmar boa parte de nossos temores quanto a este conceito que parece fluir em constante fuga, sendo a distância entre a causa e o efeito de tudo que presenciamos.
Estabelecer e seguir um calendário é adquirir a sensação de segurança, de integrar-se ao ritmo do Universo e esta iniciativa é milenar e comum a todas as culturas.
Existe uma infindável variedade de medições do tempo conhecidas, destacando-se os calendários egípcio, grego, asteca, romano, maçônico, revolucionário (relativo à Revolução Francesa de 1789), chinês, muçulmano, gregoriano….

O que existe em comum é a tentativa de marcar no tempo, pontos de referência que relacionados aos fenômenos naturais, cuja evolução e repetição periódica são passíveis de observação.

Organizar o tempo é ter-se a impressão de dominar, através da regulamentação, aquilo a que não se pode escapar.

É possuir um meio de marcar as etapas da própria evolução humana, exterior ou interior, e de celebrar, ao mesmo tempo, numa data fixa, tudo aquilo que faz lembrar as relações do homem com os deuses ou o cosmo, ou com os mortos.

A contemplação de um calendário evoca o perpétuo reinício. Ele é o símbolo da morte e do renascimento, assim como da ordem inteligível que preside ao escoamento do tempo; é a medida do movimento.

(Extraído de CHEVALIER, Jean – Dictionnaire des Symboles. Paris, Éd. Robert Laffont S.A. e Ed. Júpiter, 1982)

Por serem mais curtos e mais fáceis de observar, os ciclos lunares formaram a base dos calendários de muitas culturas. O ciclo solar é mais complexo, exigindo estágios culturais mais avançados para serem adotados.

O calendário egípcio antigo já era bem elaborado e perfeitamente adaptado às necessidades locais: ano de 365 dias, dividido em 12 meses de 30 dias e mais 5 dias adicionais, sendo os meses, agrupados em três estações: inundação, inverno, verão.

Dias e noites são divididos em 24 horas, que a astronomia helenística sub-dividirá em 60 minutos, de acordo com o sistema sexagesimal que é de origem babilônica.

Já entre os primeiros hebreus, o sistema era lunar, herdado dos fenícios, porém, no período bíblico, passou a ser solar.

Via de regra, o calendário está em paralelo com os ciclos da natureza.

Porém, a modernidade impôs, de forma global, uma uniformidade COMERCIAL, sendo adotado um mesmo padrão em todo o mundo, ignorando-se a falta de sincronismo com os eventos naturais.

Por exemplo:

Enquanto o “fim de ano”, no Hemisfério Norte, está em sincronia com o INVERNO, ou seja, o período de declínio energético, do risco de morte, das adversidades da natureza, seguido na PRIMAVERA, como ponto de partida de um “ano novo”, aqui no Brasil, temos que nos convencer que o ciclo “acabou” justamente no VERÃO, ou seja, quando estamos no auge da energia e deveríamos estar no máximo da ação…

Boa parte do calendário atualmente adotado, deriva dos modelos juliano (homenagem ao imperador romano Júlio Cezar…) e gregoriano (dedicado ao papa Gregório…).

Para melhor compreender os significados simbólicos atribuídos a cada mês, existe uma interessante série de poemas escritos por Públio Ovídio Nasão (Publius Ovidius Naso), em seu livro Fastos, onde descreve as festas religiosas romanas, dos seis primeiros meses do ano.

Mesmo sendo um autor “pagão”, Ovídio permaneceu na lista de literatura “permitida” pelo Vaticano do século XII.

O mês de Janeiro, Ianuarius mensis, em latim, era dedicado ao deus Jano, protetor de todos os começos, representado com duas faces, uma voltada ao passado, outra, ao futuro, sendo conhecedor de tudo o que já ocorreu ou que virá a acontecer.

Februarius mensis, ou, Fevereiro, é o mês reservado às cerimônias de purificação e expiação denominadas Februa, não sendo dedicado exclusivamente a nenhuma divindade em especial.

Março, Martius mensis, relativo a Marte, deus guerreiro, era o mês inicial do antigo calendário romano, pois era considerado o pai mitológico de Rômulo, primeiro rei de Roma, além de preparar para a primavera (hemisfério norte…) que aflora no mês seguinte, ou seja, Abril (Aprilis, aperire), que significa ABRIR, período dedicado a Vênus, deusa da fertilidade, do amor; também, são homenageadas as deusas Flora, Vesta e Ceres.

O mês de Maio (Maius mensis, em latim), possui variadas versões quanto à etimologia: ou deriva da deusa Maia, mãe de Mercúrio, como também pode originar de “aos Maiores” (Maius), ou seja, período dedicado aos mais velhos, aos antepassados.

Por sinal, esta versão corrobora a de que Junho (Iunius, iuvenis = jovens, juniores…) fosse um período em homenagem aos jovens; outrossim, também pode ser atribuído à deusa romana Juno, que é assemelhada à poderosa Hera, da mitologia grega.

Alguns estudiosos associam ao verbo iungo, que significa juntar, unir, pelo fato de ser este mês atribuído ao da unificação entre os romanos e os sabinos (após o episódio do “rapto das sabinas”…).

Os meses de Julho e Agosto homenageiam os imperadores romanos Júlio e Augusto, iniciando-se, a partir deste ponto, a nomeação sequencial numérica para os demais (antes de Júlio Cezar, o calendário era subdivido em 10 meses…):

Setembro (mense septembri, relativo ao numeral “sete”), Outubro (Octóber mensis, oito…), Novembro (novembris, nove…) e Dezembro (decèmber, dez…).

Como podemos constatar, nosso calendário atual é povoado por deuses, imperadores e algarismos romanos e certamente existe uma SINCRONICIDADE entre tais tópicos e as predisposições comportamentais de cada mês…

Se nas regiões Norte de nosso planeta, ainda existe uma cerca sincronia entre o significado de cada mês e as estações do ano, tornando mais fácil o entendimento, ainda assim, por força da globalização que padronizou as medições do TEMPO, perdeu-se a relatividade e universalizou que dezembro é o FIM (ainda que no Brasil, seja VERÃO e não inverno…) de um ciclo, que re-INICIA em janeiro (que aqui, ainda é verão, ao invés de PRIMAVERA…).

Na antiguidade, os povos comemoravam o término do período difícil, de tempo frio, neve, isolamento, falta de alimento, alegrando-se com a volta do calor, da abundância de recursos, do retorno às atividades, ao desabrochar da vida…

Modernamente, continuamos a celebrar, não mais pela sintonia de nossas emoções com a natureza à nossa volta, mas sim, muito mais por adaptações religiosas às datas festivas “pagãs” e pela pressão social que impõe a todos seu calendário COMERCIAL padrão.

Outrossim, não raro, muitos de nós sentem- se desconfortáveis, até mesmo envoltos em emoções “contra a corrente” do momento, vivenciando tristeza, raiva, medo…

Talvez, interiormente, estejam ainda em pleno FOGO de verão, desejosos em realizar sonhos, em materializar objetivos, enquanto o restante da sociedade lhe despeja um balde de gelo invernal, dizendo: acabou-se o TEMPO

O mito de Jano, o rei-deus guardião de Saturno/Cronos (o tempo…), homenageado, não por acaso, em Janeiro (início dos anos…) nos apresenta um rosto voltado para o passado, outro, ao futuro e uma fusão que ocorre no exato momento da passagem entre os extremos, o NEXO, instante fora do tempo e espaço, em que é sentida intensa comoção pelo término de um ciclo de vida.

O sofrimento experienciado por muitos de nós, é consequência da permanência no Nexo, refúgio desconfortável onde se ilude eternizar aquilo que é efêmero, passageiro….

É o complexo saturnino, descrito na Psicanálise, com a recusa de “perder”, de deixar passar, aquilo a que nos ligamos sucessivamente na vida, evocando o outro lado do mito de Cronos, em que devora seus próprios filhos.

Jano toma conta do TEMPO, sem jamais pretender dominá-lo ou detê-lo.

É igualmente o senhor dos portais, das entradas e saídas, e ao fechar uma porta, simultaneamente abre outra…

Sofremos por insistir no caminho já trilhado e agora fechado, deixando de perceber a nova porta aberta, à espera de nossa passagem por ela.

Ainda que sem sincronia perfeita com a natureza (individual e ambiental…), que o calendário que, não por acaso, adotamos, bem nos sirva para cerrar, como chave-de-ouro, as portas deste ano e para abrir o novo ciclo.

Esses são os votos de um feliz rito de passagem, de seu colaborador junguiano e sem nexo.

HENRIQUE VIEIRA FILHO

Artista Plástico, Psicanalista

Autor de diversos livros, centenas de artigos, palestrante, docente, articulista colaborador em diversos veículos de comunicação.

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