O Artista Visual e Psicanalista, Henrique Vieira Filho, aborda a polêmica de branqueamento nas artes sacras, em contraponto ao fenômeno das Madonas Negras.
Artigo publicado resumido no Jornal O Serrano, Nº 6290, de 04/02/2022 e na íntegra em https://henriquevieirafilho.com.br/2022/02/07/nossa-senhora-negra-e-iemanja-branca/
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.5948891
Lendo as notícias da semana, em que a Bahia celebra Iemanjá neste dia 02/02 e que o ano 2022 está sob sua regência, lembrei da eterna polêmica de suas imagens com pele branca e cabelos lisos, em contradição à sua matriz africana.
Já estudei várias teses universitárias acaloradas sobre o embranquecimento, o eurocentrismo e o apagamento do corpo negro na arte, que ocorre no Brasil.
Por outro lado, nosso país igualmente idolatra uma Virgem Negra, aparecida como estátua nas redes de humildes pescadores, que se tornou a padroeira católica brasileira.
Reprodução em resina da estátua de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, grávida (conceição = concepção) e que apareceu (aparecida) nas águas. | Estátua original, feita de terracota: 36 cm de altura 2,50 kg.Além do restauro inicial (foi encontrada com a cabeça quebrada), foi reconstituída nos anos 70, após ser feita em centenas de pedaços. Em exposição no Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida |
Da mesma forma, a negra imagem de Nossa Senhora do Monte Carlo tornou-se mãe da Polônia. Sua estampa foi trazida de Constantinopla pelos cruzados e conta a lenda ter sido feita por São Lucas, que pintou em uma mesa de cedro na casa da Sagrada Família, retratando a figura materna junto a Jesus menino:
“Papa Francisco confia toda a humanidade à Virgem Negra”
Fonte: Vatican News, de agosto de 2020
Na verdade, muitas estátuas e artes originais das deusas antigas foram trazidas do Oriente Médio para a Europa, na época das Cruzadas.
Contabilizam-se mais de 300 madonas negras cultuadas na França, Espanha, Alemanha, Itália, Bélgica, Suécia, Irlanda, Portugal, dentre outros países, ainda em nossos dias.
Estudos psicanalíticos teorizam o fenômeno das Madonas Negras (além dos dois casos acima relatados, beiram às dezenas no catolicismo europeu) como reflexos da memória ancestral da humanidade, reprisando padrões universais (arquétipos) do culto à Grande Mãe, como em Isis (Egito), Shakti (Índia), Deméter (Grécia), dentre as mais conhecidas.
Entretanto, como a explicação mais simples tende a ser a correta, temos desde a simplória teoria do escurecimento das tintas e vernizes sob efeito das velas e incensos nos santuários, até o plausível e curioso “causo” elucidando a “branquitude” da Iemanjá brasileira.
Nos anos 50, um dirigente umbandista encomendou, como presente, uma pintura a óleo retratando a orixá com as feições de sua própria esposa, trajando azul e pairando sobre as águas, tal qual uma visão que ela teve. A pintura fez sucesso e foi emprestado a outros templos e, de tão solicitado, tiveram que disponibilizar cópias, que passaram a ser vendidas em uma livraria especializada, no Rio de Janeiro.
Assim, o retrato original serviu de inspiração para os demais artistas em suas versões como estátuas e ilustrações que atualmente se encontram por todo o país.