Neste artigo para o Jornal O Serrano, Henrique Vieira Filho aborda a tradição da Congada em Serra Negra, conectando-a à história da escravidão no Brasil e à luta por igualdade racial.
Publicado resumido no Jornal O SERRANO, Nº 6430 de 15/11/2024.
Em 15/11 celebramos a Proclamação da República. Sem questionar sua importância, convenhamos: foi um processo liderado por uma elite dominante, sem a participação popular. Especialmente, da população negra, recém “liberta” e sem políticas públicas voltadas para a inserção dos ex-escravizados no mercado de trabalho e na sociedade.
Na sequência do calendário, em 20/11, temos o Dia da Consciência Negra a nos lembrar que a luta por igualdade racial é um processo contínuo.
Nossos museus históricos exibem muito pouco sobre esse tema. Vemos artefatos pré-históricos, ferramentas da época de Cabral, mas, quase nada de grilhões, correntes, chibatas, colares de ferro.
“Houve um processo de apagar a memória da escravidão porque o Brasil tem vergonha da história de sua formação”, diz Ademir José da Silva, presidente da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra.
Em nossa cidade, muito se fala sobre a descendência italiana e pouco sobre a afrodescendência.
Nestor Leme disse (e a história confirma) que é questionável atribuir a fundação de Serra Negra tão somente à figura de Lourenço Franco de Oliveira. A versão “oficial” afirma que ele “tinha um espírito aventureiro e decidiu sair pelos sertões com sua família e uma CARAVANA DE ESCRAVOS (sic)”.
Assim sendo, é natural supormos que a população negra era numericamente superior à população branca nos primeiros anos da cidade. Essa desproporção era característica das áreas rurais brasileiras da época, dependentes da mão-de-obra escravizada.
Por mais que se apaguem dos livros de história, é evidente a influência da cultura africana em nossa sociedade, miscigenada com as tradições indígenas e européias.
Escolho, como exemplo da vez, a Congada, uma rica manifestação cultural que combina música, dança, teatro e elementos religiosos, tanto africanos, quanto católicos.
Você sabia que se trata da encenação da coroação de um Rei do Congo? Ou seja, celebrar um líder negro em plena sociedade escravocrata! Era um ato de afirmação da identidade e da cultura africana!
Para dissimular e também por sincretismo religioso, a Congada, passou a associar o Rei do Congo a santos católicos, como São Benedito.
A Congada é um grito ancestral que ecoa até hoje, lembrando-nos da força e da beleza da cultura afro-brasileira!
Deixo com vocês a narração de Sebastião Pinto Da Cunha, extraída de seu livro “Serra Negra – Seu Povo E Suas Epopéias”:
“Olegário de Castro, negro alto e imponente, ao lado do João Miranda e seus descendentes, apearam do Bairro dos Mosquitos, trazendo suas espadas, estas de metal. Vinham com as suas roupagens bonitas e a classe de uma tradição insuperável, na arte da Congada.
Naquele vinte de janeiro (1938), a Congada moveu-se como nunca e para jamais! Vi o Olegário, o João Miranda, seus negrinhos (sic) e todos aqueles que me povoam a lembrança, no exercício do rito milenar.
O Joãozinho esteve como ninguém. Era de se ver seu desembaraço, sua auto-realização.
Dir-se·ia que toda uma tradição, apresentava-se ali para celebrar os derradeiros momentos do velho fazendeiro, que chegara jovem, no sertão bravio, pouco após a passagem dos mineradores, abrindo a plantação do café, com a experiência do Vale do Paraíba, formara família, criara filhos, ajudara a libertar os escravos (sic) e, agora, vinha contemplar, pela vez derradeira, todo o quadro multicor, que acabo de bosquejar”.